África Austral, passagem do século XVIII para o XIX: holandeses e, depois os britânicos, estendem seus domínios na Colônia do […]

Shaka, o genial guerreiro que fundou o Império Zulu

África Austral, passagem do século XVIII para o XIX: holandeses e, depois os britânicos, estendem seus domínios na Colônia do Cabo (núcleo da futura África do Sul) submetendo povos nativos. Os portugueses exploram o comércio escravo em Moçambique enviando escravizados para o Brasil. Dezenas de tribos de origem Bantu estão em guerra disputando terra e gado. Milhares de famílias, expulsas de suas terras, migram para longe. Foi nesse contexto de colonização europeia, guerras e migrações forçadas que Shaka, um gênio militar, ascendeu ao poder e formou um império que se tornou uma poderosa potência sob hegemonia zulu.

Infância: humilhado e rejeitado

Shaka ou Tchaka nasceu em 1787. Ele era filho de uma união ilegítima entre a princesa Nandi e Senza Ngakona, líder de um clã do povo Nguni, da etnia Bantu que, originária do Congo, povoou a África do Sul entre os séculos XIII e XVIII. Por sua origem ilegítima, Shaka foi rejeitado pelas co-esposas de Senza que também repudiam sua mãe. Este é o começo de uma vida de discriminação, humilhação e opressão: Shaka era tratado como bastardo, abusado e espancado. Experiências que irão forjá-lo e endurecê-lo. Shaka foi mandado para Dingiswayo, célebre chefe dos Mtetwas, um grupo tribal formado por mais de trinta tribos Nguni. O chefe Dingiswayo realizava, então, alianças com outros chefes unindo tribos. Também estabeleceu alianças comerciais com os portugueses, em Moçambique. Dingiswayo alicerçou seu poder através da organização de um exército formado por guerreiros jovens. Um dos jovens recrutado foi Shaka. O garoto frágil e desajeitado transformou-se em um guerreiro carismático dotado de força física prodigiosa. Sua reputação se espalhou e ele logo se tornou porta-voz e braço direito de Dingiswayo chegando a comandar um regimento do exército. Deve vir dessa época a associação de Shaka aos zulus, um pequeno clã dos Mtetwas, e também falantes da língua Nguni.

Contexto histórico: ocupação britânica

Shaka ainda era uma criança quando, em 1795, os britânicos ocuparam a Colônia do Cabo (ela pertencera aos holandeses de 1652 a 1795). A colônia tinha uma população em torno de 22 mil “cristãos”, de maioria branca e poucos negros alforriados. A África Austral estava, então, inserida na densa rede mundial de relações comerciais e estratégicas que a ligavam à Europa e à Ásia. A população nativa constituída pelos San, Khoi, Khoisan, Griqua, Nama e Kora, havia sido submetida e sofrido o peso maior da expansão colonial europeia. Mais ao norte do território Xhosa, formaram-se confederações poderosas, independentes dos acontecimentos do Cabo. Entre 1815 e cerca de 1835 ocorreu uma grande convulsão social que atingiu essas confederações em guerras violentas. O período foi chamado de Mfecane (esmagamento) ou Difaqane (dispersão ou migração forçada).

As causas do Mfecane são diversas: pressão do colonialismo europeu e do comércio escravo, acentuado crescimento das populações nativas graças ao cultivo de milho. O milho das Américas havia sido introduzido pelos portugueses em Moçambique, no século anterior. Dali expandiu-se para o continente. O milho é mais produtivo que o sorgo e outras culturas tradicionais, permitindo alimentar uma população muito maior. Exige, porém, mais água e solos aráveis, de preferência próximos a rios. Por absorver mais água, o milho degrada rapidamente as áreas agrícolas, obrigando movimentos tribais regulares a procura de terras. Foi nesse contexto de guerras e migrações forçadas que Shaka ascendeu ao poder, unificou os povos de língua Nguni e criou uma poderosa potência militar sob hegemonia zulu.

Império Zulu sob liderança de Shaka

Entre 1816 e 1818, Shaka consolidou-se no poder como líder soberano dos Nguni (povo de seu pai) e dos Mtetwas (povo sob chefia de Dingiswayo, morto em combate) e começou a executar seu projeto de estabelecer um império militar sob hegemonia zulu. Criou um exército permanente, bem alimentado e bem treinado, e que travava uma “guerra de aniquilação” – uma realidade nova para os povos da região. Até então, os combates tendiam a ser ritualizados, começando com uma troca de insultos e terminando quando provocassem baixas. As armas eram lançadas em vez de usadas na luta corpo-a-corpo, e se um guerreiro matasse o oponente, estava obrigado a deixar o campo de batalha e submeter-se à purificação para não ser vingado pelo espírito da vítima (KEEGAN: 1995, p. 46).. Shaka criou regimentos permanentes que viviam separados da sociedade civil em acampamentos militares. Todos os homens de 16 a 60 anos serviam no exército. Estavam proibidos de casar até completarem 40 anos de idade quando recebiam esposas dos regimentos “femininos” que Shaka também formou. Alimentavam-se quase só de carne, sendo-lhes proibidos beber leite. Cada regimento era distinguido por diferentes cores dos panos de cabeça e pelos couros de gado usados no escudo. Os guerreiros tinham um treinamento intensivo. Shaka introduziu novos equipamentos: o escudo longo que protegia o corpo inteiro e a assegai, uma lança mais curta e de lâmina larga utilizada para o combate corpo a corpo. Ela substituiu as lanças de arremesso, de cabo comprido, que quase sempre se perdiam nas batalhas.

As mulheres e as crianças também serviam no exército zulu, seguindo os guerreiros com o gado, cozinhando e carregando comida. Os prisioneiros de guerra tornavam-se escravos; se fossem jovens e fortes podiam fazer parte do exército, mas antes abandonam seu nome e língua para se tornarem verdadeiros zulus. Foi graças a esta organização militar que os zulus conseguiram conquistar e derrotar numerosas outras tribos, levando o título de Grandes Guerreiros. A expansão Zulu foi um fator importante do Mfecane (esmagamento) que despovoou grandes áreas do sul da África com a morte de mais de 2 milhões de pessoas. Os métodos de Shaka deflagraram, também, a Difaqane (migração forçada) com o deslocamento de numerosos povos, obrigados a deixarem suas terras e seus modos de vida tradicional. Fugitivos dos zulus chegaram às margens do lago Tanganica, a 3.200 km de onde tinham partido. Por volta de 1820, os domínios da Zululândia chegavam a 20 mil km² chegando na fronteira da Colônia do Cabo. Tinha uma população de 250.000 habitantes e um exército de 50 mil guerreiros aos quais podia-se adicionar outros milhares homens de tribos aliadas. Durante seu reinado, Shaka manteve relações pacíficas com os colonos brancos da Colônia do Cabo. Chegou a enviar delegados para visitas diplomáticas. Os britânicos, por sua vez, não fizeram nenhuma tentativa de desafiar Shaka. Foi somente após a sua morte que começaram os sangrentos conflitos entre os zulus e os colonos holandeses-africâneres conhecidos como “bôeres”. Declínio e fim de Shaka O declínio de Shaka começará com sua crescente tendência à tirania, o que lhe rendeu a oposição de seu próprio povo. Entre os exemplos mais citados de sua crueldade está a “matança dos covardes”: no retorno de uma expedição, Shaka ordenou o massacre de todos os guerreiros que recuaram ou abandonaram suas armas. A morte de sua mãe Nandi, em outubro de 1827, foi um golpe para Shaka. No funeral, ele mandou sacrificar cerca de 7 mil pessoas e abater as vacas para que seus bezerros soubessem como era a perda de uma mãe. Ordenou, ainda, um jejum coletivo de três meses, a suspensão dos cultivos por um ano, suprimiu o leite (a base da dieta zulu) e proibiu que os casados vivessem juntos por um ano mandando executar o casal cuja mulher engravidasse. Isso aumentou o descontentamento de seus apoiadores que começaram a abandoná-lo. Mostrando sinais de temência e crueldade crescente, Shaka foi perdendo prestígio o que enfraqueceu sua autoridade. Aproveitando a ausência temporária da maior parte do exército, seus dois meio-irmãos o assassinaram com golpes de lança em 22 de setembro de 1828. Ele tinha 41 anos e seu reinado durara pouco mais de dez anos. Shaka não deixou filhos, embora ele tivesse um harém de 1.500 mulheres que eram destinadas principalmente a trocas ou presentes para outros chefes. A continuação da linhagem foi assegurada por seu meio-irmão Dingane. O Império Zulu sobreviveu à morte de seu fundador mas, sem a ameaça de Shaka, os britânicos começaram a cobiçar as terras zulus. Na segunda metade do século XIX, os combates entre britânicos e zulus intensificaram-se. Em 1877, a Zululândia foi anexada e em 1894, dois terços das terras zulus foram confiscadas pelos colonizadores e os nativos confinados em reservas.

Um personagem polêmico e mitificado

A vida do líder zulu deu origem ao famoso romance do escritor africano Thomas Mofolo (1877-1948), do Lesoto, intitulado “Shaka”. Escrito em 1911 na língua Sotho, é uma releitura mítica da história, ascensão e queda do imperador zulu. A saga de Shaka foi contada para gerações de negros e brancos recebendo acréscimos e muito juízo de valor. Segundo a historiadora Carolyn Hamilton, a imagem de Shaka foi “inventada” na era moderna de diversas maneiras e de acordo com a visão de mundo de seus intérpretes. As fontes escritas mais antigas são relatos de comerciantes europeus aventureiros que conheceram Shaka no final de seu reinado. Um deles, Nathaniel Isaacs (1808-1872) publicou, em 1836, suas Viagens e Aventuras na África Oriental – que se tornou uma das principais fontes de estudos posteriores. Isaacs criou a imagem de Shaka como monstro degenerado. Herói para o povo zulu, “Napoleão Negro” numa versão romantizada ou um chefe cruel e inescrupuloso para outros, a figura de Shaka permanece polêmica e ainda exerce influência quase dois séculos depois de sua morte.

Bosquímanos, guerreiros da tribo zulu, posando para cartão postal de 1879. Ao fundo britânicos e africâners.

Fonte: Ensinar História (Joelza Ester Domingues)

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