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O shopping center de luxo que virou centro de tortura de presos políticos na Venezuela
No centro de Caracas, a capital da Venezuela, um edifício parece ter saído de um filme de ficção científica.
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O Helicóide – El Helicoide – foi idealizado como símbolo de um país rico e promissor.
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Atualmente, no entanto, abriga uma das prisões mais violentas da Venezuela e retrata o declínio de uma nação que está à beira do colapso.
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Na semana passada, a crise que o país atravessa ganhou um novo capítulo: o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, se declarou presidente interino com o apoio de outros países, como o Brasil e os Estados Unidos.
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‘Modernidade instantânea”
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O Helicóide foi construído nos anos 1950, quando a Venezuela, empurrada pelo lucro das exportações de petróleo, sonhava alto.
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Naquele momento, o mundo era reconstruído após a Segunda Guerra Mundial, e o ditador venezuelano Marcos Pérez Jiménez queria projetar uma imagem de um país do futuro.
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“Investiu-se muito nesta ideia de modernidade instantânea”, diz Lisa Blackmore, coautora do livro Downward Spiral: El Helicoide’s Descent from Mall to Prison (“Espiral descendente: o declínio do Helicóide de shopping center para prisão”, em tradução livre) e diretora de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Essex, no Reino Unido.
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“A Venezuela é um país que, em 1948, passou a ser governada por ditadura militar, cujo lema era: ‘Vamos progredir se construirmos'”.
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O Helicóide seria o primeiro shopping center drive-thru do mundo, com rampas ascendentes levando às 300 lojas planejadas para o complexo. Era tão grande que podia ser visto de qualquer lugar de Caracas.
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“Este é um edifício absolutamente icônico; não havia nada parecido em toda a América Latina”, Blackmore diz.
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Mas Pérez Jiménez foi derrubado em 1958 e esse ambicioso projeto acabou se tornando um imenso elefante branco.
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Pesadelo
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Por anos, grande parte do edifício permaneceu vazia. Mas, nos anos 80, o governo começou a transferir algumas agências para o Helicóide, sendo a mais importante o SEBIN (Serviço Bolivariano de Inteligência).
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A reportagem da BBC Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com ex-prisioneiros, familiares de detentos, advogados, ONGS e também dois ex-agentes penitenciários para reconstruir pela primeira vez seu interior.
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Eles nos pediram para proteger suas identidades porque têm medo de represália do governo.
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Rosmit Mantilla chegou ao Helicóide em maio de 2014. Ele foi uma das mais de 3 mil pessoas presas durante os protestos anti-governo que sacudiram o país.
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Aos 32 anos, já era um conhecido ativista político e defensor dos direitos LGBT.
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Durante sua prisão, Mantilla se elegeu deputado federal na Assembleia Nacional da Venezuela, tornando-se o primeiro parlamentar assumidamente gay do país.
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Turbulência política e econômica
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Ao mesmo tempo em que a vida na Venezuela ficava cada vez mais difícil, com a inflação nas alturas, escassez de comida, produtos básicos e medicamentos, e serviços públicos à beira do colapso, no Helicóide, o cotidiano era dinâmico.
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Ônibus lotados de prisioneiros chegavam à prisão todos os dias.
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Estudantes, ativistas políticos e algumas vezes pessoas, incluindo crianças, foram presas porque estavam no lugar errado e na hora errada.
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Mantilla foi acusado de ajudar a financiar os protestos. Ele nega as acusações.
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Manuel, um ex-agente penitenciário, se lembra bem de Mantilla.
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“Ele era um desses detentos que nunca deveriam ter estado lá”, diz Manuel.
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Disseminando medo
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O ex-agente penitenciário disse à BBC Mundo: “Ao prender muitas pessoas, o objetivo era disseminar medo na população”.
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“E acho que eles foram bem-sucedidos nisso, de certa forma. Porque, atualmente, quando há um protesto ou uma passeata, muitos venezuelanos ficam com medo porque não querem ser presos”.
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Os prisioneiros do Helicóide esperavam dias, semanas e até meses para serem julgados.
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“O SEBIN é uma instituição cuja missão é produzir inteligência e informação. Mas faz tempo que esse não é o seu papel. Seu papel é defender um regime, uma ditadura”.
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Durante seu tempo na prisão, que durou dois anos e meio, Mantilla diz que sentia medo o tempo todo.
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Mesmo assim, senti-se obrigado a documentar a tortura e a crueldade que aconteciam diariamente no Helicóide.
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‘Guantánamo’
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Quando chegou ao Helicóide, em 2014, Mantilla diz que só havia 50 detentos. Dois anos depois, já eram 300.
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Com o aumento no número de detentos, os guardas tiveram de improvisar mais espaço.
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Salas comerciais, banheiros, escadas e espaços projetados para serem lojas foram convertidos em celas.
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Os prisioneiros as batizaram com nomes como Aquário, Tigrito e Infernito.
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Mas a pior de todas era Guantánamo (em alusão à prisão que os Estados Unidos mantêm em Cuba).
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“Era um antigo depósito de documentos”, lembra-se Víctor, outro agente penitenciário que trabalhou no Helicóide. “Tinha 12 m² e abrigava cerca de 50 presos”.
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Era quente, apertada e claustrofóbica.
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“Não havia luz, água, privada, nenhuma infraestrutura sanitária ou camas”, diz Mantilla. “As paredes eram manchadas de sangue e excremento”.
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O carcereiro Victor disse à BBC News Mundo que os prisioneiros podiam passar semanas ali sem tomar banho, urinando em garrafas e defecando em sacolas plásticas – que eles chamavam de “barquinhos”.
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Tortura sistemática
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Mas os maus-tratos não eram o único motivo para ter medo no Helicóide.
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Todos os ex-prisioneiros e ex-agentes penitenciários que falaram com a BBC News Mundo sobre suas experiências descreveram o uso sistemático de tortura que o SEBIN empregava para obter confissões.
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Carlos, um ex-detento, diz: “Eles cobriram minha cabeça com uma sacola. Fui violentamente agredido, chutado e levei choques elétricos na cabeça, nos testículos e no estômago”.
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“Senti uma humilhação imensa, impotência, vergonha e indignação”.
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Segundo Luis, outro detento, “minha cabeça estava coberta, mas ouvi um dos agentes do SEBIN dizendo: “Vamos pegar a arma. Vamos te matar”.
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“Eles riram e disseram: tem uma bala só. Vamos ver se você está com sorte hoje”, contou.
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“Podia sentir o cano na minha cabeça… e ouvi o clique do gatilho. Aconteceu várias vezes”, acrescenta.
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Mantilla diz que começou a coletar os depoimentos dos presos e descobriu que métodos brutais eram usados rotineiramente.
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“Meteram uma sacola plástica cheia de fezes humanas na cabeça de um estudante universitário”, conta.
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“Ouvi pessoas que foram estupradas com objetos pontiagudos, que foram alvo de choques elétricos, outras que foram vendadas por dias até perderem a consciência.”
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Abusos de direitos humanos
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Os dois ex-agentes penitenciários que falaram com a BBC confirmaram a ocorrência de tortura, mas negaram ter participado.
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“Vi pessoas sendo agredidas, amarradas, suspensas por seus punhos em um corrimão de uma escada e com os pés mal tocando o chão”, diz Víctor.
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“Eles usavam um carregador de bateria de carro com dois cabos conectados à pele dos detentos para dar choques elétricos”, acrescenta Manuel.
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“A tortura era sistemática”, acrescenta. “Era uma prática normal”.
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Muitos desses casos foram documentados por organizações de direitos humanos internacionais e, em fevereiro de 2018, a Corte Penal Internacional abriu uma investigação preliminar sobre violações de direitos humanos cometidas durante os protestos.
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O governo venezuelano se comprometeu a cooperar com a investigação.
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Deixado para morrer
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Em outubro de 2016, depois de passar dois anos e meio no Helicóide, Mantilla ficou tão doente que as autoridades permitiram que fosse operado em uma clínica.
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O procedimento foi autorizado por um juiz, mas, no momento da operação, o SEBIN interveio. Gritando de dor, Mantilla foi retirado da clínica e obrigado a voltar ao Helicóide, onde permaneceu na solitária.
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“Era como se você tivesse uma doença terminal, te trancassem em uma sala e dissessem que você nunca seria libertado. Eles estavam me condenando à morte”, diz.
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Vídeos que circularam nas redes sociais mostram Mantilla gritando palavras de ordem ao ser retirado da clínica e levado em um veículo do SEBIN. Organizações humanitárias internacionais pediram que ele fosse libertado.
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Depois de dez dias, o governo cedeu à pressão, e Mantilla foi transferido inicialmente para um hospital militar, então para uma clínica, onde finalmente foi operado.
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Mantilla foi libertado oficialmente em novembro de 2016 e, poucos dias depois, empossado como deputado – quando passou a testemunhar sobre o que tinha visto e vivido no Helicóide.
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“Crimes contra a humanidade não têm prazo de validade”, diz ele.
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Exílio
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Mas Mantilla nunca se sentiu em segurança depois que foi libertado e, em julho de 2017, deixou a Venezuela rumo à França. Ele recebeu asilo em maio do ano passado.
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De seu novo endereço, ele ainda acompanha de perto os desdobramentos na Venezuela, e espera voltar algum dia à sua terra-natal. O período que passou preso no Helicóide mudou sua vida para sempre.
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“Nunca mais fui o mesmo… É complicado porque, de alguma forma, o Helicóide foi a minha casa por dois anos e meio. Embora tente negar isso, muito de mim permaneceu lá.”
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Manuel e Víctor também deixaram a Venezuela e vivem no exterior.
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Em maio de 2018, prisioneiros do Helicóide se rebelaram em protesto às suas precárias condições de vida. Em consequência, vários deles foram libertados ,e o governo prometeu melhorias.
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Mas, segundo depoimentos de quem permanece lá, pouco foi feito para mudar a situação.
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A BBC News Mundo tentou contatar o governo da Venezuela por diversas vezes sobre as acusações dentro do Helicóide, mas não obteve resposta.
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*Fonte: BBC
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